Lobby do amianto gasta US$ 100 milhões no mundo
JIM MORRIS
DA BBC/ICIJ, ESPECIAL PARA A FOLHA
Uma rede mundial de grupos de lobby gastou quase US$ 100 milhões desde a
metade dos anos 80 a fim de preservar o mercado internacional do
amianto, carcinógeno conhecido que já tirou milhões de vidas e tem seu
uso proibido ou restrito em 52 países, constatou o ICIJ (International
Consortium of Investigative Journalists) depois de nove meses de
investigação.
"Erin Brockovich"
brasileira combate o setor
Amianto
pode matar mais de 1 milhão até 2030
Com apoio de verbas públicas e privadas e a assistência de cientistas e
governos simpáticos à causa, os grupos ajudaram a facilitar a venda de
dois milhões de toneladas de amianto no ano passado, em sua maior parte a
países em desenvolvimento. Ancorada pelo
Chrysotile Institute,
sediado em Montreal (Canadá), a rede se estende de Nova Delhi (Índia) à
Cidade do México, passando pela cidade de Asbest, (Rússia). Sua
mensagem é a de que o amianto pode ser usado em segurança sob condições
"controladas".
Como resultado, o uso do amianto está crescendo rapidamente em países
como China e Índia, o que leva especialistas em saúde a alertar sobre
futuras epidemias de câncer de pulmão, asbestose e mesotelioma, um
câncer maligno altamente agressivo que costuma atacar o revestimento dos
pulmões.
A OMS (Organização Mundial da Saúde)
informa
que 125 milhões de pessoas continuam a encontrar amianto em seus locais
de trabalho, e a OIT (Organização Internacional do Trabalho)
estima
que 100 mil trabalhadores morram a cada ano de doenças relacionadas ao
amianto.
Outros milhares perecem de exposição ambiental ao material. James Leigh,
diretor do Centro de Saúde Ocupacional e Ambiental na Escola de Saúde
Pública de Sydney, Austrália, previu que haverá um total de cinco
milhões a 10 milhões de mortes causadas por cânceres relacionados ao
amianto até 2030, uma estimativa que ele considera como "conservadora".
"É totalmente antiético", disse Jukka Takala, diretor da Agência de
Segurança e Saúde no Trabalho e antigo dirigente da OIT, sobre a
campanha de promoção do uso do amianto. "É quase um crime. O amianto não
pode ser usado de maneira segura. É claramente carcinógeno. Mata
pessoas".
De fato, um painel de 27 especialistas formado pela Agência
Internacional de Pesquisa do Câncer, da OMS, reportou no ano passado que
"as provas epidemiológicas vêm mostrando associação cada vez maior
entre todas as formas de amianto e risco ampliado de câncer de pulmão e
mesotelioma".
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Editoria de Arte/Folhapress |
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PESQUISAS
A indústria do amianto, no entanto, sinalizou que lutará para proteger
as vendas da fibra bruta do minério e dos produtos com ele fabricados,
como telhas e encanamentos produzidos com cimento de amianto. Entre seus
aliados estão pesquisadores cujos trabalhos são bancados pelo setor e
que produziram centenas de artigos, aceitos por publicações científicas,
para alegar que o crisotilo --o amianto branco, única forma do minério à
venda atualmente-- é muitíssimo menos perigoso que o amianto marrom ou o
azul.
A Rússia é o maior produtor mundial de crisotilo, e a China o maior
consumidor do minério.
"Trata-se de um material extremamente valioso", argumenta J. Corbett
McDonald, professor emérito de epidemiologia na Universidade McGill, em
Montreal, que começou a estudar trabalhadores expostos ao crisotilo nos
anos 60, com apoio da Associação Mineradora de Crisotilo de Quebec. "É
muito barato. Se tentarem reconstruir o Haiti sem usar amianto, o custo
será muito maior. Quaisquer efeitos [do crisotilo] sobre a saúde serão
triviais, se é que existirão".
A visão otimista de McDonald sobre o crisotilo pressupõe que os
empregadores forneçam controles de poeira, ventilação e equipamentos de
proteção apropriados para os trabalhadores. Os especialistas em saúde
pública afirmam que essas medidas são incomuns nos países em
desenvolvimento. "Quem quer que fale sobre uso controlado de asbestos é
ou mentiroso ou tolo", afirma Barry Castleman, consultor ambiental da
região de Washington que assessora a OMS quanto aos problemas do
amianto.
CANADÁ
Resistente ao calor e ao fogo, forte e barato, o amianto --um metal
fibroso de ocorrência natural-- no passado era considerado como um
material de construção de propriedades mágicas, Por décadas, os países
industrializados, dos Estados Unidos à Austrália, o empregaram para
incontáveis produtos, entre os quais encanamentos e isolamento para
teto, materiais de construção naval, sapatas para freios, tijolos e
pisos.
No começo do século 20, começaram a surgir informações sobre os danos
que o material podia causar aos pulmões. Pelo final do século, milhões
de pessoas estavam doentes ou haviam morrido por exposição a amianto, e
bilhões de dólares em indenizações haviam sido pagas aos queixosos. Do
total de amianto utilizado, 95% provém do crisotilo, agora proibido ou
de uso severamente restrito em pelo menos 51 países.
Essa história sórdida, porém, não bastou para deter a ação do lobby do
amianto, liderado há muito tempo pelo Canadá. O governo federal
canadense e o governo da província de Quebec, onde o crisotilo é
minerado há décadas, doaram 35 milhões de dólares canadenses ao
Chrysotile Institute, anteriormente conhecido como Asbestos Institute.
O Canadá não emprega muito amianto em seu território, mas exportou 153
mil toneladas do minério em 2009; mais de metade desse total foi enviado
à Índia. As autoridades canadenses lutaram para impedir que o crisotilo
fosse incluído na lista do Anexo 3 da
Convenção de Roterdã,
um tratado que requer que exportadores de substâncias tóxicas usem
rótulos claros e alertem os importadores quanto a quaisquer restrições
ou proibições.
A despeito da crescente pressão por parte de autoridades de saúde
pública de todo o mundo, que desejam a suspensão das exportações de
amianto canadense, as autoridades do país continuam a defender o setor.
"Desde 1979, o governo do Canadá vem promovendo o uso seguro e
controlado do crisotilo, e nossa posição continua a mesma", afirmou
Christian Paradis, ministro
do Meio Ambiente no governo conservador do Canadá e antigo presidente
da Câmara do Comércio e Indústria do Amianto, em comunicado por escrito
ao ICIJ.
Amir
Attaran, professor associado de direito e medicina na Universidade
de Ottawa, classifica a posição do governo como inaceitável. "Fica
absolutamente claro que [o primeiro-ministro] Stephen Harper e seu
governo aceitaram a realidade de que o curso atual de ação causa mortes,
e consideram o fato tolerável", diz Attaran.
Clement Godbout, presidente do Chrysotile Institute, insiste em que a
mensagem de sua organização vem sendo mal interpretada. "Dizemos que o
crisotilo é um produto com risco potencial, e que é preciso controlar
esse risco. Não é algo que se deva adicionar ao café a cada manhã".
O instituto é uma central de distribuição de informações, enfatiza
Godbout, e não uma agência internacional de policiamento. "Não temos o
poder de interferir em quaisquer países, porque eles têm seus poderes,
sua soberania", diz. Godbout se declarou convencido de que as grandes
fábricas de cimento feito de amianto, na Índia, têm bons procedimentos
de controle de poeira e de vigilância médica, ainda que reconheça que
possa haver operações menores "nas quais as regras não são seguidas
rigorosamente. Mas isso não representa um retrato fiel do setor. Se
alguém dirige seu carro a 300 km/h em uma rodovia dos Estados Unidos,
não quer dizer que todo mundo mais faça a mesma coisa".
ORGANIZAÇÕES IRMÃS
O Chrysotile Institute oferece o que descreve como "assistência técnica e
financeira" a uma dúzia de organizações irmãs em todo o mundo. Essas
organizações, por sua vez, tentam influenciar a pesquisa científica e a
política em seus países e regiões.
Considere a situação do México, que importa do Canadá a maior parte de
seu amianto. A promoção do uso do crisotilo é a tarefa de Luis Cejudo
Alva, que comanda o IMFI (Instituto Mexicano de Fibro Industrias) há 40
anos. Cejudo declara manter contato regular com o Chrysotile Institute e
com organizações relacionadas na Rússia e Brasil, e faz palestras no
México e no exterior sobre o uso prudente do crisotilo.
Guadalupe Aguilar Madrid, médica e pesquisadora do Instituto de Seguro
Social do governo federal mexicano, diz que o IMFI exerce grande
influência sobre as regras trabalhistas e ambientais mexicanas, que
continuam a ser frouxas. O país está à beira de uma epidemia de
mesotelioma e outras doenças relacionadas ao amianto que poderia custar
5.000 vidas ao ano, diz a médica.
No Brasil, um promotor de Justiça quer dissolver o
Instituto
Brasileiro do Crisotila, que se descreve como grupo de interesse
público e opera com isenção tributária. Em petição judicial, o promotor
acusa o instituto de servir como mal disfarçado agente de vendas para a
indústria brasileira do amianto. O instituto nega a alegação, afirmando
"garantir a saúde e a segurança dos trabalhadores e usuários".
Na Índia, onde o mercado do amianto vem crescendo em 25% ao ano, a
poderosa Asbestos Cement Products Manufacturers Association desfruta de
estreito relacionamento com os políticos e recebeu US$ 50 milhões das
empresas do setor desde 1985, de acordo com fontes do governo. Uma das
especialidades da organização são "editoriais publicitários" --falsos
artigos noticiosos que louvam a segurança e o valor dos produtos de
amianto. Um anúncio veiculado no jornal "Times of India" em dezembro é
típico. Alegava, entre outras coisas, que o flagelo do câncer causado
pelo amianto no Ocidente havia surgido em um "período de ignorância",
quando a manipulação pouco cautelosa de materiais de isolamento feitos
de amianto resultou em exposição excessiva. Esse tipo de exposição já
não acontece, afirmava o anúncio.
PATROCINADOS
O argumento do lobby do amianto depende em larga medida de cientistas
que caracterizam o amianto branco como relativamente benigno. Pesquisas
sobre o crisotilo financiadas pelo setor começaram a ser conduzidas de
maneira mais efetiva a partir da metade dos anos 60, quando estudos que
comprovavam os efeitos nocivos do amianto atraíram atenção indesejada
para as então prósperas minas de Quebec. Minutas da reunião da Quebec
Asbestos Mining Association em novembro de 1965 sugerem que o grupo
adotou o setor de tabaco como paradigma: "Foi mencionado que o setor de
tabaco havia lançado um programa próprio [de pesquisa] e agora sabe que
posição ocupa. A indústria sempre faz bem ao cuidar de seus próprios
problemas".
Os estudos se provaram benéficos para um setor que vem sofrendo
crescente pressão pela cessação de suas atividades. São vigorosamente
contestados por outros cientistas, segundo os quais o crisotilo é
claramente capaz de causar mesotelioma e câncer de pulmão.
"Existe base científica legítima para a alegação de que o amianto branco
pode ser menos nocivo [que o marrom ou o azul]? Sim", diz
Arthur
Frank, médico e professor na escola de saúde pública da
Universidade Drexel, em Filadélfia. "Mas isso significa que seja seguro?
Não".
Esta história é parte de uma
investigação
conjunta conduzida pelo ICIJ e pela BBC News. Colaboraram
ANA
AVILA, na Cidade do México;
DAN ETTINGER, em Washington;
MURALI
KRISHNAN, em Nova Delhi;
ROMAN SHLEYNOV, em Moscou; e
MARCELO
SOARES, em São Paulo.
TRADUÇÃO DE PAULO MIGLIACCI